Nesta revisão Enem de Linguagem e Filosofia, entenda o que torna a comunicação humana tão especial e tão importante na definição da identidade humana.
O ser humano é um animal que fala. E fala demais! Nossa capacidade de blábláblá é impressionante. Mas, fale a verdade: o que você tem a dizer sobre a fala
Antes teríamos que delimitar o que significa falar. Se falar é só emitir sons na esperança de alguma comunicabilidade, então grande parte dos animais também falam. Afinal, cachorros latem para nos alertar, gatos miam para pedir atenção e leões rugem segundos antes de nos devorar (ok, a última é brincadeirinha, mas é uma boa mentira para se falar para os amigos).
Contudo, compreender a fala por características tão primais recai numa generalização que pouco ou nada nos diz sobre a fala humana. Nossa capacidade – e mesmo necessidade – de lero-lero é de uma sofisticação difícil de reduzir a latidos, miados e rugidos. Há de se convir, o ser humano é o único animal que tem o incrível talento de comentar o tempo quando está ao lado de outro perante o silêncio constrangedor de um elevador. “Quem tempo chato, né?” “Pois é, mas amanhã parece que faz sol”.
É de se perguntar qual a razão para tamanho diálogo fútil. Grande parte da resposta está numa estreita relação que o ser humano desenvolve entre fala e identidade. Em outras palavras, quando falamos nos afirmamos como sujeitos. Não é a toa que a primeira pessoa do singular é o “Eu”. Por que não o “Tu’ ou o “Ele”? Ou mesmo por que não começamos a lista de pronomes a partir da primeira pessoa do plural? A resposta está no fato de que o “Eu”, seja na língua portuguesa, seja em tantas outras, é o princípio pelo qual a gente identifica a si mesmo. “Eu sou eu, eu sou aquilo que eu entendo que sou”.
Complicado? Pense no papel simbólico do espelho. Da importância que todo vaidoso dá ao espelho. É nessa superfície reflexiva que notamos se o cabelo está desarrumado, a maquiagem borrada ou se há restos daquele cachorro quente gorduroso no canto da boca. Se arrumar perante o espelho é aprimorar uma imagem da identidade, é ajeitar aquilo que entendemos como um “Eu”.
Mas o que o “Espelho, espelho meu” isso tem a ver com a fala humana? Muita coisa. Pra começar, o fato de a Rainha Má falar com o espelho na história da Branca de Neve. A fala é o gesto que nos faz existir como sujeitos, é uma vontade de afirmação, vontade de existir tão marcante quanto se olhar no espelho. Por isso que somente monstros se olham no espelho e não vêem seu próprio reflexo (aliás, em forma de pesadelo há um excelente quadro de Magritte).
Não conseguir falar, sentir-se emudecido, é o pesadelo de muita gente. Mesmo pessoas mudas, gagas ou com algum outro problema de oratória, sofrem desse temor. Isso porque mesmo elas ainda conseguem falar de alguma forma. Um ser humano completamente sem fala não consegue se entender como ser humano. Estar sem fala é estar antes do sujeito, é pertencer ao plano imaginário de um ser que ainda não conseguiu se constituir.
Sejamos mais claros. Giorgio Agamben, filósofo italiano, comenta que todos os animais possuem uma língua (latido, miado, rugido), mas só o ser humano a transforma em discurso. Mais do que isso. O ser humano precisa cindir a língua em discurso para se constituir enquanto tal, para deixar o reino dos animais e se identificar como algo diferente. Ou seja, a fala humana não é simplesmente o repertório de uma língua, mas a capacidade de operá-la a partir de um “Eu”, a partir de uma identidade que se quer reconhecida parante si mesmo. Novamente, um espelho – só que de palavras.
Isso explica o porquê o papo furado no elevador no exemplo acima. Soltar o verbo, nem que seja pra comentar algo desnecessário, é o gesto de dizer “ei, estou aqui e eu vejo que você está aí”, é a maneira de você reconhecer a existência do outro a partir da manifestação da sua. Poderíamos então fazer um trocadilho com o filósofo René Descartes e dizer “falo, logo existo”.
Mas não sejamos simplistas. Esses desejo de existência, de afirmação da identidade própria pela fala também ocorre na escrita, porém esse é outro papo. E a conversa continua…