Entenda o que é rage bait, por que viralizou em 2025 e como esse fenômeno da indignação pode aparecer na sua redação do Enem.
Você já se deparou com uma opinião tão absurda nas redes sociais que sentiu a necessidade imediata de comentar, compartilhar ou simplesmente expressar sua indignação? Se a resposta for sim, provavelmente você caiu em uma rage bait (ou “isca de raiva”) , expressão escolhida pelo Dicionário Oxford como Palavra do Ano de 2025.
Essa escolha é um diagnóstico preciso sobre o momento que vivemos: uma sociedade cada vez mais dominada pela lógica das emoções manipuladas.
Se nos anos anteriores expressões como “post-truth” (pós-verdade) ou “brain rot” (palavra de 2024) apontavam sintomas de desgaste cognitivo, “rage bait” aponta para o mecanismo que aciona esses efeitos.
Bora entender como essa palavra se tornou uma das peças centrais da economia da atenção?
Antes de tudo, o que significa “rage bait”?
O termo apareceu pela primeira vez em fóruns da Usenet por volta de 2002, derivado do conhecido “road rage” (fúria no trânsito). Na época, “rage baiting” nomeava a tática de motoristas que provocavam outros de propósito, como dirigir devagar demais na pista da esquerda, para gerar conflito. O termo explodiu em 2025 porque cresceu a consciência coletiva sobre ele. Vídeos de receitas absurdas, opiniões extremas, thumbnails exageradas e posts provocativos passaram a ser identificados como “rage bait”.
Segundo a Oxford, trata-se de material online concebido intencionalmente para ser frustrante, provocativo ou ofensivo, visando aumentar tráfego e interações nas redes sociais. E expressões como “não engaje” se popularizaram (mesmo que comentar “não engaje” já seja, claro, engajamento).
Como os algoritmos incentivam o ódio
Redes sociais vivem de publicidade. Para isso, precisam manter o usuário online o maior tempo possível. E a métrica central é engajamento, em outras palavras: qualquer ação que mantenha você ali.
Os algoritmos atuais não priorizam verdade, utilidade ou saúde mental. Eles priorizam tempo de tela.
O caso Facebook Papers

Os documentos vazados por Frances Haugen (ex-gerente de produto na equipe de integridade cívica do Facebook que vazou dezenas de milhares de páginas de documentos e pesquisas internas da empresa para a imprensa e órgãos reguladores dos EUA em 2021) revelaram que, em certos períodos, o Facebook atribuía peso até cinco vezes maior para a reação de “raiva” em comparação com uma curtida.
A lógica da gamificação do conflito
Em plataformas focadas em texto, como X/Twitter, posts atacando grupos rivais têm desempenho muito superior aos positivos.
Um estudo da PNAS mostrou que cada palavra moral-emotiva negativa aumenta retweets em 20%.
Por que caímos na armadilha?
A explicação está na nossa própria neurobiologia. Especialistas explicam que o cérebro tem inclinação a prestar mais atenção a conteúdos que provocam emoções fortes, por dois fatores principais: o estado de alerta (resultado de um processo evolutivo) e a quebra de padrão.
Evolutivamente, fomos programados para reagir rapidamente a ameaças. Quando nos deparamos com algo que nos irrita profundamente, nosso cérebro interpreta aquilo como uma “ameaça social” e nos impulsiona a reagir, seja comentando, compartilhando ou simplesmente expressando nossa indignação. Os criadores de rage bait exploram exatamente esse mecanismo primitivo de defesa.
Exemplos práticos do fenômeno
O rage bait se manifesta de diversas formas no ambiente digital:
- Opiniões extremas e provocações: publicações que apresentam posicionamentos intencionalmente controversos ou ofensivos sobre temas sensíveis.
- Receitas absurdas: vídeos de culinária com combinações repugnantes de alimentos, feitos propositalmente para chocar.
- Críticas a personalidades populares: ataques a figuras públicas queridas pelo público, visando provocar seus fãs.
- Desinformação política: conteúdos que distorcem fatos ou apresentam narrativas polarizadoras sobre questões políticas.
- Conteúdos editados: vídeos manipulados que mostram apenas trechos polêmicos de discursos, retirando contexto.
O comportamento se tornou particularmente comum em plataformas como o X (antigo Twitter), que monetiza o engajamento para usuários verificados, criando um incentivo financeiro direto para a produção de conteúdo polarizador.
Eu fico muito impressionado com como rage bait funciona. Essa galera com selo de verificado faz isso direto e a galera fica comentando e repostando, gerando engajamento.
— Vinicius Dias (@cviniciussdias) December 8, 2025
Rsrsrs
Rage bait na política brasileira e global
O fenômeno não se restringe às redes sociais recreativas; ele invadiu o discurso político de forma alarmante. Figuras políticas em todo o mundo têm transportado a lógica do rage bait digital para outros espaços, transformando debates parlamentares, entrevistas e campanhas em espetáculos de indignação performática.
No Brasil, vemos essa dinâmica em diversos contextos: declarações polêmicas que dominam o noticiário por dias, provocações deliberadas entre campos políticos opostos e a disseminação de narrativas distorcidas que visam mais provocar reações emocionais do que promover debates substantivos. A política deixa de ser um espaço de construção coletiva e se torna um palco para a performance da raiva.
O ciclo vicioso: de brain rot a rage bait
A escolha de rage bait ganha ainda mais significado quando analisada em conjunto com a palavra de 2024: brain rot (cérebro podre ou deterioração mental). O termo de 2024 descreve o desgaste mental causado pelo consumo incessante de conteúdo superficial, repetitivo ou trivial.
Segundo Grathwohl, existe uma conexão direta entre os dois termos: “Juntos, eles formam um ciclo poderoso onde a indignação gera engajamento, os algoritmos o amplificam e a exposição constante nos deixa mentalmente exaustos”. É um diagnóstico preocupante: estamos diante de uma sociedade em que a raiva engaja, o algoritmo amplifica e o cansaço mental se instala, criando um ambiente digital tóxico e emocionalmente esgotante.
Base teórica: por que o fenômeno não é só “coisa da internet”
Byung-Chul Han e o “enxame”
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em obras como No Enxame (2014), descreve o ambiente digital como um espaço onde a comunicação é dominada por um “enxame” barulhento e disperso, composto por indivíduos anônimos e fragmentados.
O enxame contrasta com a massa, que, segundo Han, possui uma alma ou direção comum. O enxame digital, contudo, é fugaz e movido pela excitação momentânea.
O rage bait é o estímulo perfeito para manter esse enxame em constante efervescência. A indignação online é uma emoção de baixa resolução e alta reatividade que não leva à ação política articulada, mas sim a um engajamento reativo e temporário. O alvo da raiva muda semanalmente, mas a excitação do enxame (e, consequentemente, o lucro da plataforma) é mantida. O rage bait impede a contemplação e a reflexão, essenciais para a formação de uma esfera pública verdadeiramente crítica.
Guy Debord e a sociedade do espetáculo
O teórico situacionista Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo (1967), argumenta que em sociedades avançadas, a relação social é mediada por imagens e a vida autêntica é substituída por sua representação espetacular.
No espetáculo, tudo o que era vivido diretamente se afasta em uma representação. A imagem, o marketing e a performance são mais importantes que o conteúdo real.
O rage bait é a manifestação digital do espetáculo. O valor do conteúdo não está na sua verdade ou utilidade, mas na sua capacidade de gerar uma reação dramática. A performance da raiva (o comentário agressivo, o título ultrajante, o corte fora de contexto) é a imagem que garante o engajamento e, portanto, o lucro. A aparência (a manchete exagerada, o thumbnail chocante) se impõe à realidade (o contexto, a nuance do debate).
Bauman e o medo líquido
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, com o conceito de modernidade líquida, descreve como as estruturas sociais e as referências estão se tornando fluidas, temporárias e incertas. Isso gera uma ansiedade difusa e um sentimento de insegurança constante.
Bauman argumenta que, diante da complexidade e da imprevisibilidade da vida moderna (medo do desemprego, crise climática, instabilidade política), os indivíduos procuram recipientes concretos e temporários para depositar suas ansiedades.
O rage bait fornece esses alvos prontos e efêmeros para a ansiedade líquida. A raiva online funciona como uma válvula de escape fácil e instantânea para frustrações estruturais que, na vida real, seriam difíceis de confrontar. Ao focar a indignação em uma “receita absurda” ou em um “inimigo político” fabricado, a plataforma desvia a atenção dos problemas sistêmicos, transformando a raiva estrutural em um consumo individualizado e inofensivo para o sistema.
